Aplicativos Digitais na Prevenção do Suicídio: Como a Tecnologia Está Salvando Vidas

Este artigo apresenta os resultados de um ensaio clínico randomizado, chamado LifeBuoy, que avalia a eficácia de um aplicativo digital baseado na Terapia Cognitivo-Comportamental de Terceira Onda no tratamento da ideação suicida em jovens. O estudo revelou uma redução progressiva e estatisticamente significativa na gravidade dos sintomas de ideação suicida ao longo de 120 dias de uso do aplicativo, superando os resultados observados em um grupo controle com um "app placebo". Além disso, o artigo aborda desafios como o baixo engajamento dos usuários e as limitações metodológicas, oferecendo insights valiosos para a evolução de intervenções digitais para prevenção do suicídio. Este conteúdo é uma leitura essencial para profissionais da saúde mental, pesquisadores e interessados em tecnologias de saúde digital.

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Fábio H. M. Micheloto

1/22/20258 min read

Introdução

A ideação suicida é um forte indicador de risco para tentativas de suicídio entre jovens, com cerca de 60% das primeiras tentativas ocorrendo no primeiro ano após o surgimento dos pensamentos. Além disso, está associada a graves prejuízos funcionais, afetando o desempenho diário e limitando o potencial futuro dos indivíduos. A intervenção precoce é essencial para prevenir esses desfechos. No entanto, jovens com ideação suicida frequentemente não recebem o suporte necessário devido ao estigma, vergonha e medo de repercussões negativas ao revelar esses pensamentos a um profissional de saúde mental.

O uso de plataformas tecnológicas como meio de oferecer suporte terapêutico direcionado pode ser uma solução eficaz para superar barreiras inerentes ao modelo tradicional de atendimento presencial. Embora estudos em adultos demonstrem que intervenções digitais podem reduzir a intensidade da ideação suicida, a eficácia e a segurança desses métodos para o público jovem ainda são temas de debate, principalmente devido ao número limitado de estudos empíricos nessa faixa etária.

Muitos jovens preferem autogerenciar seus pensamentos e se mostram receptivos ao suporte psicológico em formatos digitais. Aplicativos autodirigidos que integram estratégias terapêuticas comprovadas, como regulação emocional e tolerância ao estresse, podem ser promissores para aqueles que não procuram ajuda formal. Nossa equipe desenvolveu o aplicativo "LifeBuoy", baseado em terapias comportamentais de terceira geração, como a terapia comportamental dialética e a terapia de aceitação e compromisso. Em 2020, um estudo randomizado de dois grupos mostrou que o LifeBuoy gerou pequenas melhorias de curto prazo na ideação suicida, quando comparado a um aplicativo placebo de informações de saúde.

Embora os resultados sejam encorajadores, eles contrastam com estudos de outros aplicativos para jovens que utilizam abordagens similares. Por exemplo, um app focado em mindfulness não demonstrou efeitos superiores após seis semanas de uso. Dessa forma, mais ensaios de alta qualidade são necessários para identificar quais estratégias terapêuticas realmente são efetivas no manejo da ideação suicida.

Apesar da alta aceitação de intervenções digitais, taxas de adesão frequentemente são baixas, variando de 0,5% a 28,6%. Esse paradoxo entre aceitação e engajamento foi observado no estudo anterior do LifeBuoy, representando um desafio significativo para a validação científica e a eficácia clínica desses aplicativos. Compreender os fatores que promovem a adesão é, portanto, fundamental para o sucesso das intervenções digitais na prevenção do suicídio.

Este novo estudo randomizado em três grupos teve como principais objetivos investigar se (i) o aplicativo LifeBuoy é mais eficaz do que um app placebo para reduzir a intensidade da ideação suicida em jovens, e (ii) se uma estratégia digital de "engajamento", aplicada em conjunto com o LifeBuoy, aumenta os níveis de interação dos usuários com o aplicativo. Além disso, avaliamos os efeitos do LifeBuoy na ansiedade, depressão, autolesão não suicida (ALNS) e tentativas de suicídio ao longo do tempo.

Métodos

O estudo foi desenhado para fornecer insights inovadores sobre a prevenção do suicídio em jovens, examinando também os impactos comportamentais e potenciais danos associados ao uso do aplicativo. A base terapêutica do LifeBuoy inclui processos de proteção contra ALNS, como regulação emocional e melhoria das habilidades de enfrentamento. Esses fatores são importantes porque a ALNS é um dos maiores preditores de tentativas de suicídio, o que sugere que a redução de sua recorrência pode prevenir tentativas futuras.

Estudo Randomizado de Três Braços sobre Adesão e Eficácia de um Aplicativo de Prevenção ao Suicídio em Jovens Australianos

Este estudo foi um ensaio clínico randomizado, online, de três braços paralelos e com duplo-cego, conduzido na Austrália. A coleta de participantes ocorreu entre 30 de maio e 8 de agosto de 2023. Os critérios de inclusão abarcavam jovens de 17 a 24 anos que apresentaram ideação suicida nos últimos 30 dias. Os participantes foram alocados aleatoriamente, em uma proporção 1:1:1, nos seguintes grupos de intervenção: (i) uso do aplicativo LifeBuoy, que oferece estratégias da terapia cognitivo-comportamental (TCC) de terceira geração; (ii) o LifeBuoy associado a uma estratégia digital de engajamento; ou (iii) um aplicativo placebo para mitigar o viés de expectativa.

Resultados Primários e Método de Avaliação

O principal desfecho de eficácia foi a alteração nos escores de ideação suicida, medidos pela Escala de Atributos de Ideação Suicida (SIDAS), nos intervalos de 30, 60 e 120 dias após a linha de base. Já o desfecho primário relacionado ao engajamento foi definido pelo número de módulos do aplicativo completados até 60 dias após o início do estudo. A última avaliação foi concluída em 6 de dezembro de 2023, e a análise dos dados seguiu o princípio de intenção de tratar. Este estudo foi registrado no site anzctr.org.au, sob o número ACTRN12621001247864.

Achados do Estudo

Um total de 692 participantes foi incluído na pesquisa, com idade média de 19,9 anos (DP = 2,5) e predominância do sexo feminino (70%). Entre os participantes, 459 integraram os grupos de intervenção combinada, enquanto 233 formaram o grupo controle.

Reduções significativas nos escores de ideação suicida foram identificadas nos grupos de intervenção combinada nos períodos de 60 dias (d = 0,48) e 120 dias (d = 0,29) após a randomização, quando comparados ao grupo controle.

No entanto, não houve diferença significativa no número de módulos completados entre os dois grupos de intervenção (OR = 1,10 e OR = 1,03, respectivamente). Além disso, os escores de ideação suicida entre os grupos de intervenção não mostraram diferenças notáveis em nenhum dos períodos avaliados (ds variando de −0,15 a 0,08).

Eventos Adversos

Eventos adversos graves, definidos como apresentação hospitalar devido a autolesão não suicida e/ou tentativas de suicídio, foram relatados por 6% dos participantes durante o período do estudo. A taxa foi maior no grupo controle (9%) em comparação com os grupos de intervenção combinada (4%). Felizmente, nenhum óbito foi registrado durante o estudo.

Discussão sobre o Estudo LifeBuoy: Reduzindo a Ideação Suicida com Tecnologia Digital

Os resultados do ensaio clínico randomizado LifeBuoy destacam o impacto positivo de uma intervenção digital baseada na abordagem de terceira geração da terapia cognitivo-comportamental (TCC). O estudo mostrou reduções progressivas e significativas na gravidade dos sintomas de ideação suicida ao longo do tempo. Comparado ao uso de um aplicativo placebo, as intervenções com o app LifeBuoy demonstraram maior eficácia estatística no alívio desses sintomas.

Eficácia e Engajamento na Utilização do LifeBuoy

Embora o impacto na ideação suicida tenha sido marcante, o resultado em relação ao engajamento dos participantes foi diferente. A estratégia projetada para reforçar o uso do LifeBuoy, incluindo mensagens motivacionais sobre os benefícios da intervenção, não mostrou impacto significativo em aumentar o engajamento ou a eficácia do aplicativo.

Um aspecto encorajador do estudo foi a redução significativa das probabilidades de necessitar de cuidados médicos para autolesões entre os participantes que utilizaram o aplicativo. Além disso, não houve registro de eventos adversos graves relacionados diretamente à intervenção, destacando o perfil de segurança robusto do LifeBuoy.

Inovações do Aplicativo LifeBuoy para Jovens

O LifeBuoy é uma das poucas intervenções digitais que se destacaram na redução da ideação suicida entre jovens. Notavelmente, os efeitos superiores começaram a surgir 60 dias após o início do estudo (d = 0,48) e foram mantidos, embora em menor grau, até os 120 dias (d = 0,29). Esses resultados estão em linha com achados de um estudo piloto anterior, reforçando a eficácia do aplicativo e sugerindo que as habilidades de autogestão podem levar pelo menos seis semanas para se desenvolver.

A principal abordagem terapêutica do LifeBuoy envolve lidar com dificuldades de regulação emocional e tolerância ao sofrimento. Essa abordagem se diferencia de outros estudos focados em intervenções digitais que, geralmente, priorizam psicoeducação ou técnicas de reestruturação cognitiva. Considerando que muitas dessas intervenções demonstraram resultados pouco expressivos, os achados do LifeBuoy indicam que a promoção da autorregulação emocional pode ser um componente essencial para gerenciar ideação suicida em jovens.

Possibilidades Futuras com Personalização por IA

Embora os resultados sejam promissores para modelos de entrega não supervisionados, a integração de algoritmos de personalização com inteligência artificial (IA) poderia potencialmente maximizar os resultados. A personalização de estratégias terapêuticas com base nos perfis de risco e preferências individuais poderia engajar mais os usuários e melhorar os desfechos clínicos.

Desafios no Engajamento com Intervenções Digitais

Um dos principais desafios abordados no estudo foi melhorar o engajamento com intervenções digitais de saúde. Apesar de o LifeBuoy ter sido projetado em colaboração com jovens para atender às suas necessidades, apenas 12,5% dos participantes usaram a estratégia de engajamento, geralmente de forma infrequente.

Essa baixa adesão pode ser explicada, em parte, pelo fato de que a estratégia de engajamento não estava diretamente integrada ao aplicativo. Isso foi necessário para evitar riscos de contaminação metodológica, mas pode ter reduzido a relevância da estratégia para os usuários do LifeBuoy. Além disso, a dissociação entre a estratégia e o app pode ter exigido esforço cognitivo adicional por parte dos participantes.

Para contornar esse problema, futuras atualizações poderiam incluir recursos integrados no próprio aplicativo, como monitoramento pessoal, recompensas, customização e elementos de gamificação. Estudos recentes indicam que intervenções digitais com maior número de recursos persuasivos apresentam maiores efeitos clínicos. Além disso, avanços rápidos em IA e design de interface oferecem oportunidades para otimizar aplicativos com recursos que reduzem a carga cognitiva dos usuários, como chatbots e personalização avançada.

Limitações e Direcionamentos Futuros

Os resultados de desfechos secundários, como ansiedade, autolesões e tentativas de suicídio, não diferiram significativamente entre os grupos. Contudo, foi observado um pequeno benefício na redução de sintomas depressivos no grupo intervenção aos 120 dias, um achado que não havia sido registrado em estudos anteriores.

Essa ausência de efeitos relevantes em outras variáveis secundárias pode ser atribuída à discrepância entre os objetivos centrais do LifeBuoy e os desfechos avaliados. O aplicativo foi desenvolvido para abordar processos de risco específicos ligados à ideação suicida, como regulação emocional e baixa tolerância ao sofrimento, que não necessariamente afetam condições como tentativas de suicídio ou ansiedade.

Outro aspecto limitador do estudo foi o tamanho amostral, insuficiente para identificar mudanças em eventos raros, como autolesões repetidas. Portanto, estudos futuros devem considerar amostras maiores e métodos mais sensíveis para avaliar mudanças em comportamentos complexos.

Além disso, a taxa de abandono foi alta, variando entre 34% e 43% ao longo do estudo. Embora essas taxas sejam comuns em ensaios digitais, o alto índice de atrito pode ter influenciado os resultados. É importante considerar que as análises de sensibilidade mostraram que os resultados do desfecho primário não foram alterados por fatores associados ao abandono.

Outro ponto é a representatividade da amostra: 70% dos participantes eram mulheres e 58% se identificavam como LGBQ+. Embora esses grupos frequentemente apresentem altas taxas de ideação suicida e autolesões, o viés amostral pode limitar a generalização dos resultados para outros grupos jovens.

Contribuições do Estudo

O uso de um placebo digital e a automação de ensaios clínicos foram pontos fortes deste estudo. Com isso, foi possível controlar as expectativas de sucesso e garantir a condução em condições duplo-cego.

Os achados deste estudo reforçam o potencial de intervenções digitais de baixa intensidade, como o LifeBuoy, em ampliar o acesso a cuidados preventivos para ideação suicida de forma segura e eficiente. No entanto, também destacam a necessidade de alinhar os objetivos das intervenções aos resultados avaliados.

No futuro, será essencial investigar os ingredientes ativos do LifeBuoy e sua relação com os resultados clínicos, permitindo o refinamento de intervenções digitais em saúde mental. Pesquisas adicionais poderão explorar estratégias para personalizar intervenções e superar os desafios de engajamento com tecnologias digitais.

Fonte: https://www.thelancet.com/journals/eclinm/article/PIIS2589-5370(24)00542-X/fulltext?dgcid=raven_jbs_etoc_email