Interromper ou Continuar Medicamentos Pré-Cirúrgicos? O Debate sobre Inibidores do Sistema Renina-Angiotensina

Descubra o que um estudo clínico revelou sobre a interrupção ou continuação de inibidores do sistema renina-angiotensina (RASIs) antes de cirurgias não cardíacas. As complicações pós-operatórias podem ser influenciadas por essa decisão?

CARDIOLOGIAFARMACOLOGIA

Fábio H. M. Micheloto

10/26/20244 min read

Interromper ou Continuar Inibidores do Sistema Renina-Angiotensina Antes de Cirurgia? Um Estudo Revolucionário

Em todo o mundo, milhões de pacientes enfrentam cirurgias não cardíacas a cada ano, e muitos deles utilizam medicamentos conhecidos como inibidores do sistema renina-angiotensina (RASIs). Esses medicamentos, frequentemente prescritos para controlar a pressão arterial e prevenir doenças cardíacas, incluem os inibidores da enzima conversora de angiotensina (IECA) e os bloqueadores dos receptores de angiotensina (BRA). No entanto, uma dúvida persiste: é melhor continuar ou suspender o uso desses medicamentos antes de cirurgias de grande porte que não envolvem o coração?

Essa questão crucial motivou a criação do estudo clínico randomizado “Stop-or-Not”, que buscou avaliar se a continuação ou interrupção dos RASIs antes de cirurgias não cardíacas traria melhores resultados para os pacientes. A importância de resolver esse dilema se deve ao fato de que as diretrizes clínicas ainda são conflitantes, e a falta de evidências definitivas deixa médicos e pacientes em uma situação de incerteza.

O Estudo “Stop-or-Not”: Uma Investigação Sobre Complicações Pós-Cirúrgicas

Entre janeiro de 2018 e abril de 2023, 40 hospitais na França participaram do estudo “Stop-or-Not”. Ao todo, 2222 pacientes que utilizavam RASIs há pelo menos três meses e que estavam programados para realizar cirurgias não cardíacas foram recrutados. Os participantes foram divididos em dois grupos: um continuou a usar seus medicamentos até o dia da cirurgia, enquanto o outro interrompeu o uso dos RASIs 48 horas antes do procedimento, tomando a última dose três dias antes.

O objetivo principal do estudo era verificar se um grupo apresentava menos complicações pós-operatórias, incluindo mortalidade, em comparação com o outro. Além disso, os pesquisadores investigaram outros desfechos importantes, como episódios de hipotensão (queda de pressão arterial) durante a cirurgia, lesão renal aguda, falência de órgãos e tempo de internação hospitalar e na unidade de terapia intensiva (UTI).

Resultados Surpreendentes: Continuação ou Interrupção?

Após a análise dos dados, os pesquisadores descobriram que não houve diferenças significativas entre os dois grupos no que diz respeito à mortalidade geral e às complicações maiores pós-cirúrgicas. Em ambos os grupos, a taxa de mortalidade e complicações graves dentro de 28 dias após a cirurgia foi de 22%. Isso significa que a continuação ou interrupção dos RASIs antes da cirurgia não impactou de forma significativa a probabilidade de complicações graves.

No entanto, um dado relevante emergiu: os pacientes que continuaram a tomar RASIs até o dia da cirurgia apresentaram uma taxa maior de episódios de hipotensão durante o procedimento. No grupo que manteve o uso dos medicamentos, 54% dos pacientes sofreram queda de pressão arterial durante a cirurgia, em comparação com 41% no grupo que interrompeu o uso dos RASIs.

Essa descoberta sugere que, embora a continuação dos RASIs não tenha aumentado o risco geral de complicações graves ou mortalidade, ela pode estar associada a uma maior probabilidade de hipotensão intraoperatória — uma complicação que pode exigir atenção especial por parte das equipes médicas durante a cirurgia.

O Impacto da Hipotensão Intraoperatória

A hipotensão intraoperatória é uma condição em que a pressão arterial do paciente cai durante o procedimento cirúrgico, o que pode comprometer a perfusão de órgãos vitais, como o cérebro e os rins. Embora o estudo tenha mostrado que a hipotensão foi mais comum entre os pacientes que continuaram a tomar RASIs, não foram observadas diferenças significativas em outros desfechos relacionados a danos orgânicos.

No entanto, episódios graves de hipotensão podem ter consequências a longo prazo, incluindo aumento do risco de lesão renal aguda, um dos pontos avaliados no estudo. Embora o aumento da hipotensão não tenha sido diretamente relacionado a maiores complicações graves, o controle rigoroso da pressão arterial durante a cirurgia continua sendo uma prioridade para minimizar esses riscos.

Implicações Clínicas: O Que os Médicos Devem Fazer?

Os resultados do estudo “Stop-or-Not” fornecem evidências importantes para orientar a prática clínica. Com base nesses achados, médicos podem sentir-se mais confiantes em relação à decisão de manter ou suspender o uso dos RASIs antes de cirurgias não cardíacas de grande porte, sem temer um aumento significativo nas complicações pós-operatórias graves ou na mortalidade.

Contudo, os profissionais de saúde devem considerar individualmente os riscos de hipotensão intraoperatória para cada paciente, especialmente aqueles que já possuem histórico de pressão arterial baixa ou que estão submetidos a cirurgias com maior risco de flutuações hemodinâmicas. A monitorização cuidadosa durante a cirurgia é essencial, e estratégias para mitigar episódios de queda de pressão podem ser benéficas.

Limitações e Próximos Passos na Pesquisa

Embora o estudo “Stop-or-Not” tenha fornecido informações valiosas, algumas limitações devem ser consideradas. Por exemplo, os pesquisadores não avaliaram diretamente o impacto a longo prazo da hipotensão intraoperatória nos desfechos de saúde dos pacientes, como a função renal após a alta hospitalar. Além disso, a pesquisa foi realizada majoritariamente em hospitais franceses, o que pode limitar a generalização dos resultados para populações com diferentes características demográficas ou sistemas de saúde.

Futuros estudos poderiam explorar essas questões e investigar se subgrupos específicos de pacientes, como aqueles com comorbidades graves ou submetidos a cirurgias particularmente complexas, poderiam se beneficiar de abordagens personalizadas para o manejo dos RASIs antes da cirurgia.

Conclusão: Uma Decisão Mais Informada

O estudo “Stop-or-Not” trouxe à tona informações cruciais sobre o uso de inibidores do sistema renina-angiotensina antes de cirurgias não cardíacas. Embora a continuação desses medicamentos esteja associada a uma maior incidência de hipotensão intraoperatória, os dados indicam que não há aumento significativo nas complicações pós-cirúrgicas graves ou na mortalidade em comparação com a interrupção dos RASIs.

Para médicos e pacientes, esses achados proporcionam uma base mais sólida para decisões informadas. A escolha de continuar ou interromper o uso desses medicamentos deve ser feita levando em conta o quadro clínico de cada paciente, o tipo de cirurgia e os potenciais riscos de hipotensão. Com base nessas informações, é possível melhorar os cuidados pré-operatórios e otimizar os resultados para pacientes em todo o mundo.

Fonte: https://jamanetwork.com/journals/jama/article-abstract/2823118?guestAccessKey=9cf2e1b9-1347-4418-915b-a19d0b4c1ef7&utm_source=silverchair&utm_medium=email&utm_campaign=article_alert-jama&utm_content=etoc&utm_term=092424&utm_adv=#google_vignette