Novas Estratégias de Reabilitação Cognitiva como Aliadas no Tratamento de Transtornos por Uso de Substâncias
Intervenções inovadoras em reabilitação cognitiva prometem melhorar o tratamento de transtornos por uso de substâncias. Conheça as abordagens e desafios para sua implementação clínica.
PSIQUIATRIA
Fábio H. M. Micheloto
10/16/20245 min read


Intervenções inovadoras no tratamento de transtornos por uso de substâncias
O tratamento de transtornos por uso de substâncias é um dos maiores desafios na área da saúde mental. Tradicionalmente, o foco está nas intervenções comportamentais e no uso de medicamentos. No entanto, novas pesquisas apontam para a importância da reabilitação cognitiva como uma poderosa ferramenta para tratar os danos cognitivos associados ao uso crônico de substâncias. Recentemente, um consenso Delphi recomendou o uso de quatro intervenções principais de reabilitação cognitiva como parte do tratamento de transtornos por uso de substâncias: modificação de viés cognitivo, gerenciamento de contingências, remediação cognitiva e treinamento em regulação emocional. Essas abordagens inovadoras oferecem novas esperanças para melhorar a eficácia dos tratamentos já existentes.
Como funcionam as intervenções cognitivas no tratamento da dependência
Cada uma dessas quatro intervenções atua em diferentes áreas do funcionamento cognitivo e emocional, ajudando a tratar os prejuízos cognitivos causados pelo uso prolongado de drogas e álcool.
A modificação de viés cognitivo busca reestruturar os padrões mentais que favorecem o uso de drogas. Por meio de treinamentos computadorizados, a ideia é redirecionar o comportamento do paciente, levando-o a evitar o impulso de buscar a substância. Por exemplo, alguém com dependência de álcool pode ser treinado para direcionar sua atenção para uma bebida não alcoólica, em vez de ceder ao vício.
O gerenciamento de contingências é uma técnica que usa reforços positivos para estimular comportamentos desejáveis. Os pacientes recebem incentivos, como recompensas monetárias ou outros benefícios, ao atingirem metas terapêuticas, como frequentar sessões de tratamento ou manter a abstinência.
A remediação cognitiva visa melhorar o desempenho mental geral do paciente. Através de estratégias práticas, como "pausar – verificar seu objetivo – escolher", o paciente aprende a lidar com situações de risco, como festas ou encontros sociais que possam desencadear o uso de substâncias.
Por fim, o treinamento em regulação emocional é uma intervenção que ensina o paciente a lidar com emoções negativas e a cultivar sentimentos positivos. Técnicas de reavaliação cognitiva ajudam a reformular pensamentos negativos, enquanto estratégias como o "saborear" de experiências agradáveis auxiliam na criação de reforçadores naturais.
Por que essas intervenções são necessárias?
Essas quatro intervenções atuam nas alterações cognitivas e emocionais relacionadas ao vício, ajudando a reequilibrar sistemas cerebrais que são danificados pelo uso contínuo de substâncias. A modificação de viés cognitivo e o gerenciamento de contingências, por exemplo, focam no sistema de saliência do incentivo, reduzindo o valor da recompensa oferecida pelas drogas e aumentando o valor de recompensas alternativas. Já a remediação cognitiva e o treinamento de regulação emocional fortalecem o controle executivo, melhorando a capacidade do paciente de tomar decisões saudáveis e controlar seus impulsos e emoções.
Essas intervenções são particularmente indicadas após o processo de desintoxicação, quando o paciente já passou pela fase mais aguda do tratamento e está pronto para manter um acompanhamento contínuo. A recomendação é que essas intervenções sejam aplicadas por pelo menos três meses, com base em uma avaliação neuropsicossocial individualizada.
Desafios para a implementação clínica
Embora essas intervenções tenham grande potencial, a transição das pesquisas científicas para a prática clínica enfrenta diversos desafios. O primeiro obstáculo é a própria definição do que é dependência. O vício é um problema multifacetado, e há uma tensão entre abordagens que consideram o vício como uma "doença cerebral" e aquelas que enxergam aspectos sociais e comportamentais como mais importantes. Alguns críticos argumentam que reduzir o vício a um problema cerebral é um erro, pois essa visão não abrange as complexidades sociais e ambientais que influenciam o comportamento do paciente.
Além disso, há um abismo entre a pesquisa e a prática clínica. Pesquisadores e profissionais de saúde muitas vezes operam em esferas diferentes, com prioridades e incentivos institucionais distintos. Esse distanciamento dificulta a aplicação de novas descobertas científicas nos ambientes de tratamento, especialmente porque há poucas oportunidades de treinamento em neurociência para os profissionais que atuam diretamente com pacientes.
Outro desafio importante é a questão dos recursos. As intervenções cognitivas frequentemente exigem o uso de tecnologias, como computadores e serviços em nuvem, além de orçamentos dedicados para financiar os incentivos oferecidos pelo gerenciamento de contingências. Muitos serviços de tratamento não dispõem desses recursos e enfrentam resistência para integrar essas novas abordagens nos programas financiados por governos.
Superando as barreiras: ciência translacional e colaboração
Apesar dos desafios, os avanços recentes na ciência translacional e na colaboração entre pesquisadores e profissionais clínicos estão ajudando a criar novas oportunidades. A "co-localização" e a "co-produção" são estratégias promissoras. A co-localização envolve a integração de pesquisas com a prática clínica desde o início do treinamento dos profissionais de saúde, para que eles possam se tornar agentes de mudança. A co-produção, por outro lado, envolve a parceria direta entre pesquisadores, profissionais de saúde e provedores de serviços, permitindo que todos participem do desenvolvimento de soluções de tratamento adaptadas às necessidades de cada paciente.
Essas abordagens também permitem que indicadores de sucesso sejam compartilhados entre os mundos da pesquisa e da clínica, facilitando a avaliação da eficácia dessas intervenções em contextos reais. Além disso, a colaboração com empresas de tecnologia pode ajudar a criar soluções que melhorem a experiência do usuário e o engajamento com as intervenções.
O papel do financiamento no avanço das terapias cognitivas
Para superar as barreiras de recursos, o apoio das agências de financiamento é crucial. Estima-se que apenas 15% da pesquisa médica financiada seja realmente traduzida em práticas clínicas. Investir em tecnologias e capacitar organizações sem fins lucrativos com os recursos necessários para aplicar essas intervenções pode ser uma solução viável para reduzir essa lacuna.
Esses novos recursos também podem ser utilizados para monitorar os resultados das intervenções cognitivas em ambientes clínicos, analisando o impacto em indicadores de saúde baseados diretamente nos consumidores. Dessa forma, vislumbramos um futuro em que a reabilitação cognitiva esteja plenamente integrada aos caminhos padrão de tratamento, potencializando a saúde e o bem-estar de pessoas com dependência.
Conclusão: um caminho promissor
As intervenções de reabilitação cognitiva trazem uma nova perspectiva no tratamento de transtornos por uso de substâncias, oferecendo abordagens baseadas em evidências para tratar os danos cognitivos e emocionais que comprometem a recuperação. Apesar dos desafios na implementação clínica, os avanços na ciência translacional e a crescente colaboração entre pesquisadores, profissionais e governos apontam para um futuro promissor, em que essas intervenções possam ser amplamente acessíveis e eficazes. Com o apoio adequado e a superação das barreiras de recursos, a reabilitação cognitiva pode se tornar um componente essencial nos tratamentos de dependência, trazendo benefícios duradouros para os pacientes e suas comunidades.
Fonte: https://onlinelibrary.wiley.com/doi/10.1002/wps.21126