Tratamentos com Células-Tronco: Estudo Revela Como Ações Governamentais Podem Frear Clínicas Fraudulentas

Estudo mostra que intervenções regulatórias na Austrália e Canadá resultaram em uma drástica redução de clínicas que ofereciam tratamentos com células-tronco não comprovados. Saiba como essas medidas podem ser aplicadas em outros países para proteger os pacientes e a pesquisa científica.

NOTÍCIAS

Fábio H. M. Micheloto

10/17/20246 min read

Nos últimos anos, clínicas oferecendo tratamentos milagrosos com células-tronco proliferaram ao redor do mundo, prometendo curas para diversas doenças e condições, muitas vezes sem qualquer respaldo científico. Entretanto, um novo estudo publicado na revista Cell Stem Cell sugere que ações governamentais direcionadas podem ser eficazes para deter essas práticas enganosas. De acordo com a pesquisa, em países como Canadá e Austrália, mais de 60% das propagandas voltadas diretamente ao consumidor, que promoviam tratamentos com células-tronco não comprovados, foram interrompidas após intervenções regulatórias.

O Papel das Células-Tronco e o Crescimento das Clínicas Fraudulentas

As células-tronco são conhecidas por seu potencial de se transformarem em diferentes tipos de células do corpo, como células da pele, músculos ou sangue. Isso as torna uma área promissora para o tratamento de uma série de doenças e lesões. No entanto, atualmente, tratamentos baseados em células-tronco são aprovados apenas para um número limitado de condições, principalmente tipos específicos de cânceres de sangue e desordens imunológicas, de acordo com a Sociedade Internacional para Pesquisa com Células-Tronco.

Apesar disso, clínicas ao redor do mundo têm oferecido terapias com células-tronco para uma ampla gama de condições, desde dores articulares e COVID longa até doenças neurológicas, problemas cardíacos e pulmonares, autismo, fadiga e até cegueira. Muitas dessas alegações são infundadas e não possuem base científica, alerta a Agência de Alimentos e Medicamentos dos Estados Unidos (FDA, na sigla em inglês).

Nos Estados Unidos, o número de clínicas oferecendo tratamentos com células-tronco aumentou exponencialmente. Em 2016, havia cerca de 350 empresas nesse setor, número que saltou para quase 1.500 em 2021, segundo os pesquisadores. A expansão rápida desse mercado está, em grande parte, relacionada a negócios que alegam "extrair" células-tronco do próprio sangue do paciente e reinjetá-las como uma cura milagrosa.

Riscos para a Saúde e Prejuízos Científicos

Infelizmente, esses tratamentos não só são ineficazes, como podem ser perigosos. Em alguns casos, os pacientes que se submetem a essas terapias podem desenvolver infecções graves, especialmente se as células forem contaminadas durante o processo de manipulação. "As intervenções comercializadas por essas clínicas, em alguns casos, causaram sérios danos físicos e financeiros aos pacientes, além de prejudicar os esforços para a realização de pesquisas clínicas sérias," afirmou Leigh Turner, coautor do estudo e diretor do Centro de Ética em Saúde da Universidade da Califórnia, Irvine.

A falta de evidências convincentes sobre a segurança e eficácia desses produtos é alarmante, segundo Turner. Muitos pacientes, atraídos pelas promessas de cura, acabam pagando somas exorbitantes por procedimentos que não têm comprovação científica e, pior ainda, podem agravar sua saúde.

Ação Governamental na Austrália e no Canadá

Para este estudo, os pesquisadores acompanharam anúncios de tratamentos com células-tronco voltados ao consumidor em plataformas online no Canadá e na Austrália durante um período de cinco anos. Nesse intervalo, ambos os países adotaram medidas rigorosas para coibir a comercialização de tratamentos não comprovados.

Na Austrália, foi proibida a publicidade de tratamentos com células-tronco e as agências regulatórias de saúde foram incumbidas de monitorar de perto esses produtos. Já no Canadá, o governo enviou cartas de “cessar e desistir” às clínicas que ofereciam essas terapias sem comprovação científica, forçando-as a interromper suas operações ou a remover as propagandas enganosas.

O resultado dessas ações foi expressivo. Até 2023, restavam apenas 12 empresas na Austrália e três no Canadá que ainda ofereciam tratamentos com células-tronco, de acordo com os dados do estudo. Isso representou uma redução significativa no número de clínicas, refletindo a eficácia das intervenções governamentais.

E nos Estados Unidos?

Nos Estados Unidos, a situação se desenrola de maneira diferente. Apesar de a FDA ter emitido dezenas de cartas de advertência para clínicas que oferecem tratamentos não comprovados com células-tronco, o mercado continua em expansão. Isso sugere que, no caso dos EUA, as medidas adotadas até o momento podem não ser suficientes para controlar o crescimento desse mercado fraudulento.

"Não sabemos se respostas comparáveis por parte de reguladores em outros países poderiam funcionar da mesma forma, ou se serão necessárias ações mais rigorosas, como multas financeiras ou até processos criminais," observou Turner. Contudo, os resultados alcançados no Canadá e na Austrália são encorajadores e mostram que, com uma fiscalização mais intensa, é possível reduzir significativamente o número de clínicas que oferecem esses tratamentos não comprovados.

Regulamentação e Atividades Anti-Fraude no Brasil

No Brasil, a regulamentação sobre o uso de células-tronco é rigorosa, e a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) desempenha um papel central na fiscalização de práticas clínicas e terapias envolvendo essas células. O uso de células-tronco para tratamentos é permitido apenas em pesquisas científicas, principalmente no âmbito de ensaios clínicos aprovados por comitês de ética, conforme estabelecido pela Resolução CNS 466/2012, que rege as pesquisas envolvendo seres humanos.

Os tratamentos com células-tronco no país estão restritos a condições específicas, como alguns tipos de câncer e doenças hematológicas, semelhantes às restrições em vigor nos Estados Unidos e na Europa. Para qualquer outro uso, incluindo a promessa de tratamentos para doenças crônicas, neurológicas ou estéticas, é necessária autorização das autoridades regulatórias e aprovação científica prévia.

Apesar dessa regulamentação, clínicas que promovem tratamentos não comprovados também surgiram no Brasil, imitando a tendência global de prometer "curas milagrosas". Muitas vezes, essas clínicas oferecem terapias não validadas cientificamente e, como ocorre em outros países, podem colocar os pacientes em risco. Em resposta, a ANVISA tem intensificado sua fiscalização e lançado ações para coibir essas práticas fraudulentas.

Em 2019, a ANVISA emitiu uma nota de esclarecimento sobre o uso terapêutico de células-tronco, alertando a população sobre os riscos de tratamentos oferecidos por clínicas que não seguem as diretrizes estabelecidas. A agência também recomendou que qualquer tratamento envolvendo células-tronco seja realizado apenas dentro de protocolos clínicos devidamente aprovados, com acompanhamento médico rigoroso.

Outra instituição que desempenha um papel importante na luta contra fraudes é o Conselho Federal de Medicina (CFM). O CFM estabelece normas éticas para a prática médica e, em suas diretrizes, é claro ao proibir médicos de oferecerem tratamentos com células-tronco que não tenham comprovação científica ou aprovação regulatória. Profissionais que infringem essas normas podem ser alvo de sanções, incluindo a perda do registro profissional.

Apesar dos esforços de regulamentação, há desafios no combate à proliferação de clínicas fraudulentas no Brasil. A fiscalização pode ser dificultada pela falta de recursos e pela rapidez com que novas clínicas se estabelecem, muitas vezes aproveitando brechas legais ou se anunciando como centros de pesquisa. Para enfrentar essa situação, especialistas defendem uma maior integração entre as agências regulatórias e as instituições de pesquisa, além de campanhas de conscientização voltadas ao público, alertando sobre os perigos desses tratamentos.

O caso do Brasil reflete a necessidade de ações coordenadas em nível internacional. A troca de informações entre agências reguladoras, como a ANVISA, FDA e outras autoridades ao redor do mundo, pode ajudar a identificar e desmantelar redes que atuam de forma fraudulenta. Além disso, a pressão por uma regulamentação mais robusta e por sanções severas contra essas práticas é essencial para garantir que os avanços na terapia com células-tronco beneficiem verdadeiramente os pacientes de maneira ética e segura.

A Importância da Regulação e do Esclarecimento

O estudo destaca a importância de uma fiscalização adequada e de ações governamentais rápidas para proteger os pacientes e impedir que práticas fraudulentas prejudiquem o progresso da ciência. À medida que o campo das células-tronco avança, é fundamental que os tratamentos sejam testados e comprovados cientificamente antes de serem comercializados como soluções milagrosas.

Além disso, os governos e as agências de saúde precisam trabalhar para educar o público sobre os riscos associados a esses tratamentos. Campanhas de conscientização podem ajudar a evitar que pacientes vulneráveis sejam enganados por promessas de curas não comprovadas, enquanto reforçam a importância de confiar em tratamentos validados por pesquisas científicas rigorosas.

Conclusão

O crescimento descontrolado de clínicas oferecendo tratamentos com células-tronco não comprovados é um problema que afeta não só a saúde dos pacientes, mas também o avanço da ciência. O estudo publicado na Cell Stem Cell demonstra que ações governamentais direcionadas, como as implementadas no Canadá e na Austrália, podem ter um impacto significativo na redução dessas práticas fraudulentas.

Com um maior esforço global para regular o mercado e educar o público, é possível proteger os pacientes de riscos desnecessários e garantir que as pesquisas com células-tronco continuem avançando de maneira ética e segura. A colaboração entre governos, cientistas e profissionais de saúde será essencial para enfrentar esse desafio e garantir que o uso terapêutico de células-tronco atinja seu verdadeiro potencial.

Fonte: https://www.drugs.com/news/government-crackdowns-can-cripple-bogus-stem-cell-cures-industry-121801.html